Artigo de opinião, da minha autoria, publicado no sítio do PAN a 3 de Agosto de 2012.
A crise tem sido um dos temas da ordem do dia nos anos mais recentes.
Saber que o seu desenvolvimento se deu num contexto em que os governos e os
estados-nação perdem poder face aos interesses unilaterais e ditatoriais dos
mercados conduz-nos ao questionamento da origem da crise. Se a reflexão sobre
as soluções para sair da crise económica é pertinente e inadiável, a
compreensão do que está na sua origem poderá ser um forte impulso no desenho
dessas soluções.
Contudo, para compreender as origens da crise teremos de discutir a
mundividência que está subjacente às sociedades globalizadas onde esta se
instala e desenvolve. Esta forma particular de olhar o mundo tem as suas raízes
na modernidade europeia e acentua-se com o surgimento e o desenvolvimento da
Revolução Industrial. Associada às visões mecanicistas da ciência suportadas
pela física newtoniana e pelo racionalismo cartesiano, a modernidade olha o
mundo como um mecanismo onde é possível, conhecendo os valores das variáveis do
estado inicial, prever estados futuros concretos e objetivos. A única incerteza
que daqui advém deve-se à falta de rigor dos instrumentos de medida, nunca a
comportamentos inesperados do sistema ou à impossibilidade de os modelos
teóricos contemplarem todas as variáveis em jogo. Os modelos teóricos são tidos
como uma leitura objetiva e inequívoca do real.
A adicionar a este universo mecânico surge a interpretação enviesada das
teorias evolucionistas propostas por Charles Darwin no século XIX. A ideia de
sobrevivência do mais apto acaba por se transformar na sobrevivência do mais
forte e institucionaliza a competição como forma de organização social. No
paradigma competitivo desenvolve-se uma ideia bélica do mundo onde, não
existindo outras alternativas, é preferível comer a ser comido. A
competitividade assume formas múltiplas no contexto da organização social e, no
século XIX, torna-se o sustento do sistema capitalista que assola o sistema
económico global. A competitividade começa na escola, onde os alunos são
encorajados a competir pelas melhores notas para conseguirem lugares nas
melhores universidades, que lhes fornecerão as melhores ferramentas para serem
mais competitivos e conseguirem sucesso no desempenho das suas funções
profissionais; a centralidade é sempre colocada no indivíduo e as ferramentas
de que ele se apropria ao longo da sua vida académica destinam-se a torná-lo
mais forte na competição com os seus pares, tornando a sociedade onde se insere
mais forte que as restantes sociedades e culturas. O isomorfismo de ideias
entre a organização do mundo não-humano e do mundo humano é bem evidente. No
mundo não-humano o senso comum vê apenas o leão que persegue a gazela, os
abutres que disputam o melhor pedaço da carcaça ou o macho mais forte a
conseguir copular com um maior número de fêmeas e a deixar os seus genes a um
maior número de descendentes que os seus rivais. Talvez a ideia isomórfica que
mais contaminou o senso comum seja a da “selva urbana” ou “selva de betão”, que
confere um significado de ambiente hostil e competitivo às comunidades urbanas
e usa o termo “selva” em analogia com o ambiente da selva original.
O paradigma competitivo, em que as sociedades globalizadas operam, vê o
mundo não-humano como um local imperfeito, pouco eficiente, que é preciso
arranjar e gerir de forma a melhorar a sua eficiência, do ponto de vista
humano; a tecnociência é o instrumento que permite tal correção. A metáfora da
batalha e da luta faz-se sentir um pouco em todas as áreas dos saberes e
manifestações sociais. Se olharmos para a medicina, por exemplo, a doença é
vista como um mal a combater, um inimigo que põe em causa os nossos interesses.
Não estou a colocar em causa a necessidade de tratamento e cura em caso de
doença; o que questiono é a perspetiva bélica subjacente ao conceito de doença.
Noutros contextos culturais, menos colonizados pela perspetiva da ciência
moderna, em particular nas mundividências orientais tradicionais, a doença não
é vista como um mal a combater, mas como uma desarmonia de um corpo que
necessita de re-encontrar o equilíbrio.
Outra perceção comum no contexto das sociedades globalizadas e
organizadas em torno das ideias da modernidade é a de que o planeta e os recursos
naturais são infinitos. As sociedades da globalização vivem na ilusão do
crescimento económico infindável num planeta finito e com recursos finitos.
Para manter as estruturas económicas a funcionar precisamos de taxas de
crescimento elevadas (na ordem dos 5% ao ano), o que conduz ao incremento do
consumo dos recursos naturais, a maioria dos quais não renováveis, e por isso
finitos, como é o caso dos combustíveis fósseis e dos metais.
As perceções que acabei de referir, ainda que profundamente disseminadas,
são não só enviesadas por um contexto cultural muito específico como criticadas
e refutadas pelas visões mais atuais da ciência. O planeta é finito e muitos
dos recursos que usamos não são renováveis. E não, a selva não é um local onde
a selvajaria e a competição imperam; na verdade, sobressaem as relações de
simbiose, com forte primazia dos organismos e do ecossistema. Uma selva (ou
floresta, se se preferir) é um complexo ecossistema resiliente que sobrevive
devido às relações simbióticas de partilha entre as diferentes espécies; de
forma idêntica, um organismo é o habitat de inúmeras espécies sem as
quais ele não poderia sobreviver.
Por que razão estamos a abordar estes assuntos no contexto de um artigo
sobre economia? A questão é que os discursos sociais instalados (hegemónicos)
constroem a realidade onde se desenrolam os acontecimentos sociais. Serão
decerto diferentes as sociedades onde se olha o mundo não-humano como uma
extensão da própria humanidade com valor intrínseco ou onde este é visto como
um mero recurso a explorar. É neste contexto que me proponho discutir a
validade do discurso hegemónico que constrói as mundividências de senso comum e
as suas consequências na organização social e económica.
Como já referi, o conhecimento que ao longo do século XX a humanidade
obteve sobre o planeta e o universo refuta as perspetivas — com raízes nas
tradições judaico-cristãs e sustentadas pelas teorias da ciência moderna — de
que a humanidade é essencialmente diferente das outras espécies e da possibilidade
de domínio do mundo não-humano por via do saber científico e da tecnologia. A
ciência hodierna recusa a leitura positivista da modernidade e reconhece o caráter
hermenêutico dos saberes que produz, a incerteza das previsões que faz e,
consequentemente, a impossibilidade de controlo do sistema Terra; compreende a
complexidade do sistema global e a imprevisibilidade das consequências que uma
perturbação pode gerar.
A perceção tradicional, subjacente à cultura das sociedades atuais
colonizadas pelo positivismo da modernidade europeia, denota uma das múltiplas
facetas da crise de perceção. O discurso hegemónico teima, por via dos
discursos políticos veiculados (propagandeados?) pelos mass media, em
perpetuar a cultura positivista que valoriza o expertise e desvaloriza a
participação democrática e a construção de propostas e soluções participativas
e colaborativas. A valorização do expertise assenta na presunção da
legitimidade dos pressupostos metodológicos subjacentes à construção do
conhecimento científico e, consequentemente, à certeza (também esta
positivista) dos conhecimentos assim produzidos como sendo uma leitura objetiva
e vinculativa do real. Deste modo, e tocando no tema central desta reflexão, a
crise económica só pode ser interpretada e explicada por peritos que
frequentemente pululam (poluem?) em programas de televisão fornecendo
verdadeiras lavagens cerebrais ao cidadão menos crítico.
Farei aqui uma pausa para sintetizar as perceções em crise que já discuti
e as que irei discutir adiante. Assim, as diferentes crises de perceção que
identifiquei até aqui são: (1) crise de perceção da natureza organizativa do
mundo não-humano através da sobrevalorização das relações de competitividade e
da desvalorização das relações simbióticas; (2) crise de perceção das relações
sociais que resulta da aplicação de um isomorfismo da perceção do mundo
não-humano ao mundo humano valorizando em consequência a competitividade em
detrimento da colaboração; (3) crise de perceção da natureza da principal instituição
produtora de conhecimento — a ciência —, que é vista como construtora de uma
leitura fidedigna e objetiva do real. Falta discutir as consequências destes
enviesamentos na perceção da organização económica e as suas implicações para o
mundo humano e não-humano e para as propostas de solução da crise.
O que disse até aqui permite, certamente, concluir que o conhecimento e a
mundividência que temos do mundo, longe de serem uma epifania do real, são
poderosos instrumentos de construção da realidade; não num qualquer sentido
místico de uma ideia pueril do poder da mente, mas porque as ações que tenho no
mundo são pensadas e materializadas em dependência da forma como concebo esse
mesmo mundo, validando, em retorno cíclico, essa conceção. Se abordarmos um
nosso semelhante com a perceção de que ele é nosso inimigo, ele responderá de
forma similar, confirmando a nossa perceção e contribuindo para a convicção de
que estávamos corretos na assunção que fizemos; da mesma forma, os sistemas
naturais respondem (ou a perceção que construímos das suas respostas) de acordo
com a mundividência subjacente à nossa ação.
O paradigma de exploração em que nos encontramos, um paradigma que
confunde o mundo natural com os recursos que aí encontramos, os animais com coisas
que podemos explorar sem respeito pelos seus interesses e bem-estar e as
pessoas com a sua produtividade, só pode existir num contexto de atribuição de
valor utilitarista e de negação de valor intrínseco à natureza e à sociedade.
Mesmo o próprio humano perde o fim em si que Kant lhe reconhecera e é
instrumentalizado num processo mecânico e insensível de melhoria da sua
produtividade a qualquer preço.
Esta visão utilitarista de humanos e não-humanos só pode ser negada
através do reconhecimento de valor intrínseco da pessoa humana e dos animais,
tendo em conta a sua senciência, e do mundo não-humano, tendo em conta a sua
singularidade; ou, numa linguagem PAN, a Pessoas, Animais e Natureza é
reconhecido valor intrínseco independente do seu valor utilitário. Não se iluda
o leitor: não estamos a defender que os humanos não tem o direito de usar os
recursos naturais; isso seria negar a sua própria condição de ser vivo, dado
que todos os seres vivos utilizam os recursos disponíveis à sua volta. O que se
questiona aqui é o direito (e a necessidade) de apropriação (e destruição)
desses recursos. A humanidade, no contexto da mundividência fragmentária
ocidental, é a única espécie que se considera como proprietária do mundo
não-humano e se vê no direito de desalojar, extinguir e destruir ecossistemas
inteiros para satisfazer necessidades de
uma minoria da população mundial, necessidades que estão muito longe de ser
necessidades básicas.
As palavras “economia” e “ecologia” têm em comum o prefixo eco- e a sua
raiz é a palavra grega οἶκος (transliterada como oikos), que
significa “casa” ou, de forma mais abrangente, “o lugar onde se vive”.
Já os sufixos distintos nas duas palavras denotam significados diferentes: o νόμος
(translit.: nomos) da primeira significa “gestão, distribuição ou
administração” e o λόγος (translit.: logos) da segunda significa
“estudo de”. Seria com certeza ingénuo da minha parte reclamar que o logos
da oikos deve antecipar o nomos; a ciência não antecipa a
tecnologia; ambas se desenvolvem numa cumplicidade que logra qualquer tentativa
de estabelecer artificialmente fronteiras nítidas. Do ponto de vista
epistemológico, o processo de administração (interação entre o aprendente e o objeto
aprendido) é também um processo de estudo e aprendizagem acerca da coisa
administrada; contudo, mais do que ingénuo, é insensato proceder ao logos
da oikos ignorando o nomos que dela foi feito. Apesar da
insensatez e dos seus resultados estarem à vista de todos, é o que continuamos
a fazer.
O sistema capitalista não reconhece qualquer valor intrínseco ao mundo
humano e não-humano. O seu principal (e único) objetivo é, através do uso do
dinheiro (polidamente chamado “capital”), produzir mais dinheiro que deverá ser
distribuído de uma forma supostamente naturalista — aquele que for mais
competitivo consegue uma maior fatia do bolo por direito natural. Este
princípio absurdo e sustentado numa mundividência enviesada foi agravado com a
implementação do neoliberalismo dos anos 80 e 90 do século XX, inspirado na
Escola Económica de Chicago e liderado por Margaret Thatcher no Reino Unido,
Ronald Reagan nos EUA e Cavaco Silva em Portugal. O capitalismo agressivo e
predatório, que há mais de um século tem vindo a estender os seus braços e a
apoderar-se das economias mundiais, não é um sistema económico (porque não visa
a gestão e distribuição da oikos) mas um sistema crematístico porque
visa a acumulação ávida de riqueza. A palavra “crematística”, à semelhança da
“economia” e da “ecologia”, também tem a sua origem na sociedade grega
clássica. Foi usada por Aristóteles no tratado Ética a Nicómaco, sendo
bem clara a distinção entre a crematística e a economia; enquanto a segunda
visa uma desejável gestão e distribuição da riqueza, a primeira denota a
condenável acumulação de bens pelo prazer único de os possuir. Se olharmos para
aquilo a que chamamos “sistema económico mundial” facilmente compreendemos que
lhe deveríamos chamar “sistema crematístico mundial” e, na sequência desta
ideia, trocar o nome de cursos, escolas e faculdades de “economia” para
“crematística”.
As soluções que até agora têm sido avançadas para a resolução da crise,
por continuarem dominadas pelo paradigma fragmentado da modernidade europeia,
oferecem somente mais do mesmo. São vários os exemplos que sustentam esta
ideia, a começar pelas medidas de austeridade que os sucessivos governos do PS
e PSD, impulsionados pelas exigências do Fundo Monetário Internacional e da
União Europeia (França e Alemanha?!), passando pelos resgates a entidades
financeiras como o BPN, até às irresponsáveis propostas da chanceler alemã
Angela Merkel de tornar os países devedores numa espécie de off-shores
dos direitos humanos e da proteção ambiental. Tais propostas sustentam-se na
valorização única e exclusiva do capital enquanto fim em si; por outras
palavras, perpetuam a lógica do sistema crematístico ao invés da gestão e
distribuição justa da riqueza criada, que deveria ser feita pelo sistema
económico. A última medida que referi é um exemplo particularmente pertinente
desta situação; ignorar a necessidade de gerar um ambiente saudável e de
bem-estar das pessoas não é uma medida de resolução de problemas, é uma medida
de adiamento da resolução de problemas. Não é possível converter bem-estar de
pessoas, animais e natureza em rendimentos de capital porque uma vida humana
destruída, um animal condenado à escravatura ou as emissões de gases com efeito
de estufa não podem ser recuperados através de investimentos financeiros mesmo
que carreguem o rótulo verde.
A crise só pode ser resolvida através da construção de uma perceção
holística do mundo, uma perceção que privilegie a compreensão da complexidade
das relações humanas internas e externas e que se sustente nelas para
administrar a riqueza gerada e que construa um sistema económico sustentado nos
saberes da ecologia, não enquanto cânone de conhecimentos de uma disciplina
científica, mas como forma de pensar o mundo.
A primeira mudança que necessitamos de fazer é reconhecer o caráter
metafórico, representativo e, consequentemente, histórico das nossas
mundividências. Um paradigma não fornece, como já tive oportunidade de
sublinhar, um conhecimento objetivo e direto do real; um paradigma constrói um
conjunto de perceções subjetivas (com uma história) e culturalmente situadas
partilhadas por um número alargado de indivíduos. Quão absurdo seria pensarmos
que o geocentrismo tinha sido uma verdade até ao século XV, então substituída
pelo que viria a ficar conhecido como o paradigma newtoniano, que, no início do
século XX, viria a ser substituído pela teoria da relatividade e pela mecânica
quântica. Será com certeza mais sensato encarar estas teorias científicas como perceções
histórica e culturalmente situadas, quanto mais não seja porque nenhuma delas
destronou completamente a outra. Ainda hoje usamos a metáfora do geocentrismo
quando olhamos para uma carta celeste, a
metáfora da relatividade de Einstein quando queremos sincronizar os
relógios dos satélites com os relógios terrestres, a metáfora da mecânica
quântica quando queremos por referido relógios em comunicação digital, e claro
que é a metáfora da mecânica newtoniana que nos guia na colocação dos satélites
em órbita. As teorias foram substituídas em consequência das alterações da perceção
humana do real e, ao contrário do que alguns apregoam, o século XX tornou a
Física numa ciência pós-paradigmática.
Na segunda metade do século XX, fruto do desenvolvimento científico e do
estranho mundo que a relatividade e a mecânica quântica desvendavam, foi-se
materializando a ideia de uma perspetiva holística em que as entidades
aparentemente independentes no contexto da mecânica clássica surgem como
perturbações interligadas e interdependentes; vórtices num contínuo fluxo do
espaço-tempo unificado por Albert Einstein. Esta necessidade de olhar os
sistemas como um todo foi rapidamente apropriada por diversas áreas científicas
e em particular as ciências da Terra, que olham agora o planeta como uma
entidade una, ainda que incompleta (entre outras razões porque a energia que
permite a dinâmica deste sistema provém de uma fonte exterior, o Sol). É no
prosseguimento desta visão global e holística que reclamamos a extensão do
reconhecimento do valor intrínseco — atribuído, no contexto do positivismo da
modernidade, somente a (alguns) humanos — a animais e ecossistemas; mas também
à singularidade da montanha e do deserto, da floresta e do oceano, do Sol e das
estrelas; este é, na minha perspetiva, o caminho a seguir.
A compreensão de interdependência global permite o despertar da
consciência e da empatia universal e, em consequência, da valorização
intrínseca do mundo humano e não-humano, que, estamos agora conscientes, não
são meras coisas a explorar, mas parte integrante do nosso ser. A adoção de
estilos de vida miméticos dos ciclos naturais, o desenvolvimento de técnicas e
tecnologias que possibilitem uma relação simbiótica entre pessoas, animais e
natureza, o desenvolvimento de um sistema económico e o abandono do sistema
crematístico são mais do que necessidades de uma biosfera em colapso: são um imperativo
que resulta da mudança da perceção que temos do mundo.
Esta forma de olhar e valorizar o mundo não se compadece com as velhas
dicotomias políticas esquerda/direita ou comunismo/capitalismo, ou com as ainda
mais velhas dicotomias ontológicas homem/natureza ou vivo/inanimado. O
antropocentrismo a que todas elas estão sujeitas coloca-as no domínio das
mundividências com interesse histórico e com pouco interesse social. Podemos (e
devemos), sempre conscientes de que são uma perceção obsoleta, usar algumas das
ideias e conceitos que aí residem para elaborar cartas celestes que nos guiem
na construção das novas perceções que a nossa época reclama, mantendo sempre
viva a ideia de que, também as novas, não passam de perceções histórica e
culturalmente situadas.
Uma reflexão atenta sobre o mundo leva-nos necessariamente à conclusão de
que a riqueza é produzida não só pelos humanos, mas por todos os sistemas do
planeta; de facto, as riquezas fundamentais só podem ser produzidas pelos
ecossistemas: a riqueza da água com qualidade que permita o florescimento da
vida, de uma atmosfera limpa, de alimentos saudáveis e tudo o mais de que
precisamos para que a oikos onde estamos nos proporcione uma vida com
qualidade e tempo para a comunidade. Não se trata de atribuir uma valorização
instrumentalista ao mundo natural, mas antes a construção da perceção de que
não somos donos desse mundo, somos seus constituintes; criar a consciência de
que a Ciência, a Arte ou a Filosofia não são tentativas de tornar o mundo
inteligível e dominável aos olhos e mãos humanas, mas ensaios de um mundo que
busca compreender-se a si mesmo.
O paradigma que emerge é o da diversidade: o poliparadigma cuja linha
orientadora é a totalidade, o ὂλος (translit.: holos) da
existência. Mais uma vez plagio (como se fosse possível plagiar no mundo uno) a
ideia do mundo natural; da mesma forma que a biodiversidade simbiótica garante
a resiliência de um ecossistema e que a ecodiversidade simbiótica garante a
resiliência do planeta, são também as diversidades de ideias e práticas humanas
simbiontes que poderão garantir a resiliência de sociedades e economias.
É talvez pertinente sublinhar a importância da simbiose no processo de
evolução e desenvolvimento (não crescimento) social. Também aqui nos socorremos
do mundo não-humano, desta vez da história da vida na Terra. O que as teorias
científicas (perceções construídas em contextos culturais e históricos
específicos) do século XX nos ensinaram é que a colaboração simbiótica é o
cerne da evolução para um novo estádio organizativo mais complexo que o
anterior. Cada um destes estádios organizativos dá origem a novos sistemas com
propriedades emergentes distintas das dos seus componentes isolados. Um exemplo
elementar é a relação simbiótica entre um átomo de oxigénio e dois átomos de
hidrogénio que dá origem a uma molécula de água. O sistema composto é, nas condições
em que existe, mais estável que os seus átomos separados. Entretanto, as
propriedades desta nova substância nada têm a ver com as dos átomos que a
constituem. Os exemplos sucedem-se na escala organizativa, não num processo
linear, mas numa complexidade e diversidade de formas quase infinita. O mesmo
se passa com os organismos vivos: mitocôndrias e cloroplastos, outrora
estruturas independentes, aprenderam a colaborar com as células que são o seu oikos
e desenvolveram uma economia dos recursos que resulta numa relação de
ganho-ganho. As células organizam-se em tecidos, estes em órgãos e estes em
seres de uma determinada espécie que colaboram com outras espécies formando
ecossistemas que são suporte de vida dos planetas (pelo menos deste planeta).
Os conceitos de organismo e ecossistema (con)fundem-se e tornam-se mais numa perspetiva
que depende do lugar do que um conceito objetivo e claro com correspondentes
inequívocos no real. Enquanto para o animal a célula é um dos seus
constituintes, para a mitocôndria é o seu habitat, inserida num
ecossistema mais abrangente que é o próprio animal. Da mesma forma, na perspetiva
do humano o lugar onde vive insere-se num ecossistema, e na perspetiva da Terra
o humano é um dos seus constituintes (ainda que nos últimos tempos dos menos
simbióticos). Tudo é, simultaneamente, constituinte e constituído numa
organização simbionte.
É nesta ideia que reside a importância da promoção da relação de simbiose
entre os humanos e dos humanos com o mundo não-humano; à semelhança dos
isomorfismos que a modernidade estabeleceu entre as teorias do mundo não-humano
e a organização social, também a pós-modernidade o pode e deve fazer. Não quero
com isto dizer que as ciências sociais se devam subordinar às mundividências
construídas pelas ciências naturais; a diversidade paradigmática das ciências
sociais é tão interessante como a que referi no contexto da física e igualmente
situada num determinado contexto histórico e cultural; contudo, parece-me que é
através da promiscuidade dos saberes que se fecunda a verdadeira riqueza
epistémica e, por isso, a luxúria da partilha do conhecimento tem tanto de útil
como de desejável. A reflexão que fiz nas últimas linhas procura denotar o caráter
de estruturas emergentes que são as sociedades: emergem da organização humana
e, porque os humanos são sistemas naturais, também as sociedades o são. Nestes tempos de visões holísticas, onde os
saberes se interpenetram, poderá perguntar-se qual o sentido de continuar a
adjetivar as ciências de naturais ou sociais?
Voltando ao cerne da discussão, se fui buscar inspiração à simbiose do
mundo natural, é também na sua diversidade que a consigo encontrar; de facto,
só pode haver simbiose se houver diversidade; o que têm dois iguais a
partilhar? A sociedade global que estamos a construir quer-se resiliente e, por
isso, diversa. Precisamos tanto de soluções locais miméticas e simbióticas do
mundo não-humano como de propostas globais com características idênticas.
Precisamos de ideias e tecnologias distintas para que as comunidades locais
criem autonomia e resiliência, mas também de ideias e tecnologias globais que
permitam organizar e planificar o presente e o futuro. Com uma grande fração da
população a viver em grandes centros urbanos, e dada a impossibilidade de deslocar
essas populações para zonas rurais, também é necessário conceber soluções que
permitam a gestão destes aglomerados humanos. E qual a melhor forma de
conseguir a diversidade necessária aos diversos níveis?
Do meu ponto de vista, é através da construção de uma democracia radical
global. Uma democracia onde cada cidadão deste planeta, olhando o mundo na sua
plenitude e respeitando e reconhecendo o valor intrínseco de pessoas, animais e
natureza, exerça a sua cidadania de forma consciente, ativa e positiva. Para
isso apenas precisamos de aproveitar o que já temos; o que, numa primeira
perspetiva, poderá parecer um problema — mais de sete mil milhões de cérebros
para conceber e 14 mil milhões de mãos para materializar. É verdade... a
matéria-prima já existe e, neste momento, constitui um problema porque não lhe
é permitido assumir o controlo e destino das suas próprias vidas particulares e
globais. Os seus papéis são ditados por um mercado tirano e crematístico
insensível às suas necessidades. Milhões de pessoas são confinadas à ignorância
e à pobreza e vistas como um problema em vez de um possível contributo para a
solução. É necessário munir as pessoas das ferramentas intelectuais
fundamentais, que permitam o desenvolvimento de uma visão crítica do mundo e de
si mesmas. Como referiu Isaac Asimov, se o conhecimento gerou problemas, não é
com a ignorância que os vamos resolver. Se permitido me for usar a metáfora de
Pierre Bourdieu, não será grande o capital financeiro a investir para que cada
cidadão deste planeta possa incrementar o seu capital cultural a um nível que
lhe permita encetar, de forma irreversível, um processo emancipatório aos
níveis intelectual e social. E por cada cidadão educado, por cada cidadão
emancipado, teremos mais um cidadão a exercer a sua cidadania, um agente
democratizando de forma radical a sociedade global. Este é o único capital que
é preciso fazer crescer na sociedade que estamos a construir; o resto são
somente recursos que devem ser utilizados tendo em conta os processos cíclicos
do planeta.
A palavra “crise”, em chinês mandarim, é representada por dois
ideogramas: 危機 (translit.: wēijī ou wei-chi);
o primeiro, wēi, significa “perigo” e o segundo, jī,
“oportunidade”, segundo alguns linguistas, e “ponto crucial”, segundo outros;
como não estou a discutir linguística, permito-me a liberdade de uma
interpretação livre de jī como ponto
crucial onde pode surgir a oportunidade. Um período de crise é, sem dúvida,
um período de perigo; um vórtice no fluxo espacio-temporal, que, perturbado por
ventos de mudança, busca um novo estado de equilíbrio. A nós, constituintes e
agentes deste ponto crucial, cabe-nos, sem sebastianismos e munidos das novas
ferramentas de perceção que temos vindo a construir no último século, arregaçar
as mangas e aproveitar a oportunidade para construir um mundo melhor, um mundo
pelo bem de tudo e de todos — pessoas, animais e natureza.
Créditos
Foto: Opening the door, por Laura Billings (Flickr).
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