Mudança de paradigmas – Transcender o radicalismo antropocêntrico
A forma como, em geral, se encara a questão da relação dos homens com os animais não humanos e com a natureza é fruto de visões políticas, filosóficas e religiosas decisivas que se foram impondo ao longo da história e encontramo-nos, nos dias de hoje, assim como nos encontrámos no passado, limitados pela influência e impacto que as mesmas têm, ainda que de forma não explícita, na nossa vivência quotidiana.
Apesar da ideia relativamente generalizada de que o homem é superior a todos os restantes seres porque provido de uma racionalidade única e, como tal, possuidor do direito de dispor de uma forma (relativamente) livre de tudo quanto existe, na perspetiva de que o que existe é para o servir, é inegável que as preocupações quer ecológicas quer pelo estatuto dos animais têm crescido exponencialmente e provocado nos últimos tempos debates cada vez mais acesos e emotivos.
Assim, se por um lado assistimos nos dias de hoje a uma exploração cruel e sem precedentes dos animais e da natureza, fruto de uma sociedade de consumo cada vez mais exigente, impiedosa e voraz, assistimos, por outro, a um positivo e frutuoso florescer de uma certa preocupação ética que se vai impondo paulatinamente mas, crê-se, de forma irreversível.
Torna-se cada vez mais evidente a importância de transcender o radicalismo antropocêntrico centrado em paradigmas de superioridade da espécie, autonomia e razão triunfante que ainda governa as nossas visões do mundo e onde a bioética, enquanto ciência transdisciplinar e dinâmica em busca de novas abordagens éticas para as questões da humanidade (que são cada vez mais as questões de tudo e todos) tem o papel decisivo e pioneiro de desbravar o terreno onde renovadas, frutuosas e inspiradoras ideias possam referenciar o comportamento do homem perante os seus semelhantes, numa nova, inclusiva, não discriminadora e abrangente relação de humanidade.
Nestes tempos de mudança assiste-se ao aumento da consciencialização sobre a crise global instalada que é fruto das crises humana, ecológica e animal, todas elas dialogantes e interdependentes e ao emergir de uma revolução de paradigmas com a imposição de novos modelos de pendor mais relativista que respondem às novas exigências éticas de comunidades cada vez mais informadas, esclarecidas, cooperantes, solidárias e compassivas, de novos hábitos e fortes convicções e que integram esta nova dinâmica evolutiva tão aberta e consciente quanto inevitável e irreversível.
Reformulação de princípios e deveres éticos e jurídicos na questão animal
Mais do que nunca se impõe uma reformulação dos princípios e deveres éticos e jurídicos que se adeque a uma nova inteligência civilizacional e que é acompanhada e promovida por um debate intenso e vibrante sobre o tratamento ético das restantes formas de vida que connosco partilham o espaço planetário.
No que toca à situação específica dos animais assiste-se também a um florescimento dos estudos dedicados à causa, que propõem diferentes abordagens quanto à necessidade, âmbito e amplitude da consideração do estatuto moral ou jurídico do animal e que têm tido uma importância decisiva para a abertura e ampliação da discussão sobre o tema e para a sua inclusão no quadro das modernas preocupações éticas.
Contudo, de uma certa perspetiva, os esforços feitos por alguns dos pensadores nesta área, de particularização e construção de complexos e sofisticados modelos de pensamento, que visam justificar (ou não) uma atitude mais ética do homem em relação ao animal parecem limitar uma compreensão integrada da realidade contribuindo muitas vezes para tornar mais sofisticada a nossa ignorância sobre a riqueza desse mundo fenomenológico que, entende-se, não poderá ser compreendido se abordado de uma forma particularizada.
Nesse sentido cabe questionar se as tão proclamadas qualidades distintivas do homem, de reflexão e autoconsciência, não constituirão verdadeiros obstáculos ao conhecimento sobre a essência das coisas, quando desvirtuadas da forma como aparentemente o são na construção de aparatosos e soberbos modelos que pensamento que parecem afastar-nos cada vez mais da nossa preciosa e essencial animalidade e consequente compreensão natural e instintiva do mundo.
Perspetiva antropomórfica no tratamento da questão animal – Especismo entre espécies – e inefabilidade
Torna-se, ainda, crucial que não esqueçamos algumas das nossas mais óbvias limitações no que toca à perceção do mundo do qual somos parte integrante.
Assim, além da já referida influência antropocêntrica que domina, em geral, o nosso modo de pensar o mundo (o homem no centro de tudo, tudo existindo para o servir) deveremos também ter uma especial preocupação com as tendências antropomórficas no tratamento da questão animal.
Mesmo no âmbito da defesa da causa animal é muito frequente que nos deixemos apanhar na teia das construções antropomórficas, abrindo a nossa empatia apenas aos seres que connosco parecem partilhar de forma mais inequívoca algumas das características que mais admiramos em nós próprios. E, por isso, lutamos para englobá-los numa esfera de moralidade e juridicidade que determinamos não ser extensível a outros seres com características distintas.
Como se a magnificência dos animais pudesse alguma vez estar subordinada à sua verossimilhança com a condição humana ou, dito por outras palavras, como se os seres vivos fossem mais dignos de consideração quanto mais se aproximassem das formas de vida tradicionalmente consideradas “superiores”, neste caso a nossa!
Essa será, de uma certa perspetiva, mais uma forma de arrogância especista, embora feita não já entre homens e outras espécies mas entre diferentes espécies.
Caberá nestes casos perguntar como podemos nós de uma forma sensata e intelectualmente honesta continuar a pensar e a agir como se ocupássemos o topo da “Cadeia do Ser” num mundo de incontáveis miríades de seres viventes, cujo conhecimento e compreensão não podemos sequer almejar alcançar se olharmos de uma forma franca para as inúmeras limitações de que somos portadores na nossa condição de seres humanos.
Apresenta-se como um imperativo ético não fazer depender a integração dos seres num espaço moral que lhes propicie o direito ao atendimento dos seus interesses, da constatação e comprovação inilidível do grau de sofisticação dos seus estados de consciência.
Por um lado, porque como acima se referiu isso significaria utilizarmos a condição humana como parâmetro para aferição do grau de consideração a dispensar aos restantes seres, o que se mostra necessariamente limitado. Por outro lado, qualquer tentativa que se faça de compreensão desses estados de consciência tem necessariamente uma natureza frágil e transitória que deverá ser aberta à problematização, refutação e reformulação. O conhecimento humano está em constante transformação e é indispensável contarmos com as nossas inevitáveis limitações cognitivas no conhecimento integral dos fenómenos que com toda a probabilidade escapará mesmo às nossas mais empenhadas e diligentes tentativas.
A este respeito considera-se que cometeremos um erro grosseiro se pretendermos alcançar todo o significado ou conteúdo da consciência do outro, seja ele que outro for, esquecendo os muitos filtros mentais, emocionais e sensoriais que possuímos, não só os comuns à nossa espécie como os nossos próprios enquanto indivíduos. Ou seja, pode, com toda a probabilidade, não ser possível descrever o mundo visto pelos olhos de um animal não só por impossibilidade nossa de o apreender em toda a sua significação como também por eventual impossibilidade de o descrever ainda que pudesse ser por nós apreendido.
Créditos
Foto: Fabulous fluid floral flairs, por Steve Wall (Flickr).
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Foto: Fabulous fluid floral flairs, por Steve Wall (Flickr).
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